ENTREVISTA | A influência de Canhoto da Paraíba na trajetória de Fernando Caneca

O músico Fernando Caneca conta sobre a ligação com Canhoto da Paraíba e revela detalhes do álbum onde interpreta o violonista paraibano 

 

Canhoto da Paraíba faria 95 anos agora no mês de março, mais precisamente no dia 19. Coincidentemente, o dia em que o músico Fernando Caneca lançou seu novo álbum Refazendo onde interpreta o histórico Refazenda de Gilberto Gil. A coincidência trivial desses acontecimentos se dilui quando lembramos que Caneca também já gravou a obra de Canhoto e foi a partir dela que se deu início a jornada mais autoral da sua carreira. 

 

Após a descoberta impactante da obra de Canhoto por acaso numa loja de discos, Caneca ficou impressionado com o chorinho de marcas tão próprias e modo de tocar distinto do violonista paraibano. Esse contato o levou a aprender as músicas de Canhoto até que dominou muitas composições e viu que tinha material para gravar um disco. 

 

Inicialmente, o projeto do disco surgia enquanto complemento de um livro, o qual Caneca chamava de ‘‘A Cena C, C de Canhoto, C de Caneca ao contrário, um livro, daqueles de mesa, sobre o Canhoto. Que tivesse a história de cada música. A inspiração por trás de cada tema’’ conta. Mas graças a um imprevisto com a Pitty, a gravadora em que trabalhava ficou com uma semana de estúdio vago, e nessa oportunidade de gravação que lhe foi sugerida, Caneca lança em 2004 o disco Visitando Canhoto da Paraíba onde interpreta composições de Canhoto. 

 

O disco é hoje considerado raro, foi muito bem recebido pela crítica, trouxe ainda a música ‘‘Agudinho’’ a qual Canhoto nunca gravou, e fazendo uso de instrumentação de triângulo e zabumba ressaltou os elementos musicais que distinguem o choro de Canhoto, como a melodia acentuada que tanto se aproxima dos ritmos populares do Nordeste, a exemplo do forró, a embolada e o repente.   

 

Esta entrevista foi realizada no dia 22/03 e surge como iniciativa da Associação Memória Musical Paraíba – MEMUS PB – para celebrar e preservar a memória de Canhoto da Paraíba, a quem músicos como Yamandu Costa, Paulinho da Viola e Jacob do Bandolim não hesitaram em classificar como uma das maiores influências do choro e do violão brasileiro como um todo.  Participaram dela a presidente da MEMUS PB, Ana Elvira, o maestro e membro honorário Luiz Carlos Peçanha, e o jornalista Walter Arcela.    

 

 

 

MEMUS – O que te levou a fazer o álbum Visitando Canhoto da Paraíba?

Fernando Caneca– Primeiro meu fascínio pelas composições do Canhoto. Fiquei apaixonado pelo repertório do disco O Violão Brasileiro Tocado Pelo Avesso. Isso me levou a outros discos do Canhoto, como Pisando em Brasa e Único Amor. O repertório do meu disco representa na realidade um mix de músicas de dois discos do Canhoto da Paraíba. Um chamado “Violão tocado pelo Avesso” e o outro “Pisando em Brasa”. Depois, minha vontade de me desenvolver no instrumento, aprimorar minha técnica do violão. Então eu resolvi, um belo dia, que iria tirar todo dia um compasso de uma música daquele disco. E assim foi… eu escutava a gravação e adaptava para um estilo que hoje em dia as pessoas chamam de fingerstyle, que é quando você toca a harmonia e a melodia ao mesmo tempo. Comecei a fazer essas adaptações para violão, adaptei a primeira música, a segunda, a quarta, a sexta… daí eu falei: uai… vou gravar um disco disso. Daí surgiu na minha cabeça outra ideia, onde o disco seria uma parte disso. Meu sonho na época era fazer um livro tipo songbook, daqueles de mesa, sobre o Canhoto. Que tivesse a história de cada música. A inspiração por trás de cada tema. Meu sonho era ir na casa de Canhoto entrevistar ele sobre cada música e colocar neste livro informações que não fossem só de partitura. O disco apareceu de repente, porque eu estava desenvolvendo uma série de gravações em uma gravadora no Rio de Janeiro, inclusive, a mesma gravadora que está lançando meu novo disco, a Deck. Eu chegava para trabalhar com o violão e fazia o teste com o engenheiro de gravação mexer no timbre do violão… eu tocava uma música de Canhoto (solfeja a música) aí o técnico chegava de lá e dizia: “Rapaz que música legal, de quem é essa música…”. Eu: do Canhoto da Paraíba. No outro dia… solfeja a música… Ele de novo: Bicho de quem é essa música? Eu: De Canhoto da Paraíba. Aí teve um dia que estava em casa, um dia normal e tocou o telefone. Era o dono da gravadora dizendo que a Pitt, que já era artista deles, tinha tido um problema e eles estavam com uma semana de estúdio ociosa. 

– Daí o dono falou: o Rodrigo Vidal disse que você tem um disco de choro. Você tem um disco de choro? 

– Eu: Rapaz, tenho. 

– Ele falou: Mas, você toca assim, se você for ao estúdio segunda-feira? 

– Eu: Toco ué… 

– Ele: Você pode na segunda-feira que vem? 

– Eu: Posso também. 

– Ele: Então vou te dar o estúdio de segunda a sexta para você gravar. 

Daí eu armei uma banda com uns amigos e fomos pro estúdio gravar. E nós gravamos seis músicas por dia. Gravamos o disco em três dias. Usei um terceiro dia para gravar a música “Todo cuidado é pouco”, daí pronto. Esse disco aconteceu e foi muito bem recebido pelo meio do choro. É um disco que as pessoas não conhecem muito. Pode ser considerado um disco raro, digamos assim. 

Luiz Carlos Franco Peçanha –  Eu queria falar uma coisinha… acho que esse sonho tem que voltar, hein… Um trabalho desse…. Ter esse livro com as partituras e textos é maravilhoso. 

Fernando Caneca – Esse tipo de informação sobre a música, mas com um discurso que possa entreter as pessoas. A ‘‘Tua Imagem” por exemplo, o Henrique Andes, que gravou com Canhoto o primeiro álbum dele, me disse que essa música “A Tua Imagem”, que já foi gravada por nomes como Raphael Rabello, Toquinho, ganhou esse nome porque eles estavam na casa de um amigo, tocando numa roda de músicos quando apareceu uma criança, uma menina que eles acharam muito bonita. E aí… Vem cá, tu é filha de fulano… pois, mais que menina bonita… aí pronto, nasceu “A Tua Imagem”. Tem outra também chamada “Tá Quentinho”. Foi o próprio Canhoto quem me falou. Ele chegou para Paulinho da Viola e disse que tinha um chorinho novo… que tá no forno. Daí Paulinho disse: tá no forno? Então “Tá Quentinho” então o nome da música virou “Tá Quentinho”. Eu consegui que a gravadora inserisse dentro do CD os PDFs com os arranjos das músicas. Então quem tem a mídia, em CD do álbum “Visitando Canhoto da Paraíba”, quando coloca no computador aparecem dois ícones, um deles são os PDFs com os arranjos que gravei. 

MEMUS –  Em que momento você chegou ao álbum “O Violão Tocado pelo Avesso”. O que aconteceu com você e esse álbum?

Fernando Caneca –  Há muitos anos atrás, ainda garoto, ali tipo no ginasial eu me envolvi com música. E aqui em Niterói tinha muita seresta. Eu tocava chorinho. Nunca tinha escutado falar em Canhoto da Paraíba. Tocava os mais famosos daqui, Waldir Azevedo, Jacob do Bandolim, Pixinguinha… Enfim, os mestres daqui. Nunca tinha escutado falar de Canhoto da Paraíba. Já quando eu estava me interessando mais seriamente por música, um amigo meu falou que tinha de escutar João Pernambuco e Canhoto da Paraíba. Eu já tinha escutado João Pernambuco, mas não sabia quem era Canhoto. Até que um dia eu estava em São Paulo na rua Teodoro Sampaio, entrei numa loja de CD. E folheando CD de músicas brasileiras, jazz, num sei quê, vi Canhoto da Paraíba. Pronto. Aí levei. ‘‘Vou saber quem é esse cara’’, pensei. Aí aconteceu aquele pancadão. Não só comigo, inclusive. No outro dia, eu voltava pro hotel vindo de algum lugar, e meu amigo baterista Cesinha, com quem toquei muito tempo e dividia o quarto nesta ocasião, estava deitado de olho fechado escutando o disco. Eu entrei, ele olhou para mim e falou assim: rapaz que música legal. Daí fiquei maluco com as músicas. Comecei a pesquisar mais sobre ele. 

Fly

MEMUS – Você acha que o choro feito no Nordeste se distingue do choro feito nas outras partes do Brasil?

Fernando Caneca – Eu acho que sim. As melodias do choro do Nordeste possuem inevitavelmente um tipo de acentuação que são muito características. Talvez passe despercebido para um músico que não seja nordestino. Mas, para uma pessoa que escutou muito frevo, por exemplo, não. Eu passei parte da infância no Recife. Apesar de naquela altura não estar envolvido com música, eu vivi ali no ambiente das músicas de lá e introjetei isso. Existe sim um acento diferente na melodia do choro do Nordeste. Eu quis sublinhar isso. Uma das coisas que percebi no Revisitando Canhoto é exatamente esse acento nordestino. Eu diria que o Canhoto é um cara que parece ter sido muito influenciado pelo choro clássico, não sei onde ele escutou, mas, ele tinha aquele espírito da seresta, daquela música da época. Isso misturado com uma forma de compor: Ele transpõe trechos, ele propõe modulações em sequências, que são muito incomuns para o jeito que se trabalhava a modulação na música daquela época. As músicas mudavam de tonalidade de forma muito diferente do que as pessoas estavam acostumadas e são acostumadas até hoje.. E quando comecei a fazer os arranjos para esse disco do Canhoto. Eu tive uma… (risos)… intuição. Para buscar uma forma diferente de apresentar, eu não queria tocar o disco, principalmente, no que diz respeito à percussão, da forma que as pessoas tocam choro aqui no Rio de Janeiro. Isso era uma coisa que não queria. O choro aqui do Rio de Janeiro, eu diria até de Minas, São Paulo, é um choro que as pessoas tocam com pandeiro, de uma forma linear, é uma coisa que fica ali com a mesma acentuação e que se repete…

Luiz Carlos Franco Peçanha – Um padrão bem definido…

Fernando Caneca – É como se fosse uma célula. Uma célula muito curta que se repete muitas vezes. Eu não queria aquilo, não queria o pandeiro tradicional do choro carioca. O disco não tem pandeiro, nem pra fazer a levada nordestina. Porque muitos ritmos e folclores usam o pandeiro. Mesmo assim eu não o queria. Não queria essa levada samba-choro que normalmente se faz. Daí eu me lembrei da percussão nordestina e decidi que ao invés de pandeiro vai ter zabumba, triângulo, ganzá e pronto. O Canhoto ria assim, do jeito que ele podia; eu falava para ele: Agora vai ser seu chorinho com pé de serra. 

MEMUS –  Como foi a recepção de Canhoto quando você apresentou o resultado de seu álbum?  E como você se sentiu? 

Fernando Caneca – Eu fiquei muito nervoso. Depois eu fiquei muito emocionado porque ele adorou, graças a Deus ele gostou muito. E a esposa, Dona Nicélia… isso foi até difícil pra caramba, porque eu fiquei nervoso na hora… com misto de nervoso e emocionado. Porque eles começaram a chorar compulsivamente. Dona Nicélia morreu antes do Canhoto, senão me falha a memória e foi Dona Nicélia que me deu uma música inédita para esse disco. Um orgulho que tenho e friso aqui nesse nosso registro: É o fato de ter gravado uma música inédita do Canhoto, que é uma música linda chamada “Agudinho”. E foi Dona Nicélia, numa das vezes que estive lá, ao lado do Canhoto, falou para mim: Fernando, você tem que gravar um choro do Chico, chamado “Agudinho”, que ele não gravou, infelizmente. E eu gravei “Agudinho” que foi muito difícil encontrar, porque o Canhoto era um cara que não tinha o hábito de escrever as partituras. As gravações que tem são gravações caseiras em festas, saraus, na casa dos amigos. O Marcos César, grande bandolinista e maestro do Recife, foi quem ajudou a fornecer a partitura da melodia de “Agudinho” e então eu fiz o arranjo. 

MEMUS –  Você gravou o álbum em 2004, Canhoto já tinha tido a isquemia. Estava sendo um tempo muito difícil para ele?

Fernando Caneca – Estava sendo um tempo muito difícil para ele. Estava praticamente imobilizado, com dificuldades para falar e vivendo da caridade das pessoas que se organizavam. Pessoas como Dalva Torres. Tinha também um deputado do Recife, que não recordo o nome, era um cara que era fã do Canhoto. Mas, enfim… foi uma das coisas que aprendi nesses poucos encontros que tive com Canhoto. Eu encontrei com ele 3 vezes. Duas vezes na casa dele e uma vez num show que promoveram pra ele em Recife e que fui chamado para fazer parte. Você via ali que ele estava naquela situação, mas é como se ele, mesmo naquele lugar, tivesse força pra agradecer. É como se ele fosse uma pessoa que tinha tudo para ser revoltado, para ser um cara com sentimentos ruins, desconfortáveis, que até poderia ter na intimidade dele, mas, que na pouca convivência que tivemos, ele não exteriorizou nenhum tipo de emoção ruim. Foi uma das coisas que aprendi nessa experiência curta com Canhoto. Essa capacidade dele assim de segurar a onda assim, de se emocionar, de rir, de achar lindo, de falar: “meu filho que coisa linda…” com toda dificuldade você via ele assim… e Dona Nicélia falava assim: “Fernando para agora, que ele está muito agitado”. 

MEMUS – Você está lançando o álbum Refazendo, onde interpreta a o Refazenda de Gil? O Refazenda é exatamente esse contato com a natureza de vivenciar um tempo diferente. 

Fernando Caneca – Exatamente isso que você falou e que estou experienciando aqui esses anos e o que de certa forma me conecta profundamente com as músicas do Refazenda, que falam sobre questões que se tornaram muito importantes para mim principalmente a terceira faixa do disco [Refazenda], que fala do tempo das coisas. É interessante quando ele fala da questão da ideia do tempo que é perdição, essa loucura que as pessoas vêm já entrando há tempo, de produzir de não perder tempo, como se falou também no filme Alice no País das Maravilhas, tem um personagem que fala isso de que tempo não é uma coisa que se perde. Tempo não é um objeto, não é um relógio. Não se perde. O próprio Refazendo procurei entender o tempo dele. Demorou uns 6 anos desde que eu comecei a fazê-lo. Ele levou quase 4 anos para ser realizado no estúdio, mas eu já estava em contato com as músicas uns 2 anos antes disso. Fiquei muito feliz com o resultado.  

MEMUS –  O que te levou a fazer esse disco?

Fernando Caneca – O que me levou a fazer esse disco é muito da ideia de fazer, da quase necessidade de fazer, e também da importância que essas músicas tiveram naquela fase da minha vida há seis sete anos atrás. Passei por uma separação, então é como se eu pulasse de certa forma nessa questão mais autoral da vida e comecei a sentir necessidade de estar sozinho, com tudo de bom e de ruim que eu tenho. (Risos) E aí há muito tempo eu toco músicas no meu Instagram. Eu apareço muito no meu perfil tocando arranjos de violão. Eu acordava de manhã, pegava o violão, fazia um arranjo e colocava no instagram. Até que apareceu a ideia de fazer o que eu chamo de Radioviola. Que os meus seguidores vão no meu perfil, e pedem músicas. ‘‘Aí eu quero ouvir ‘As rosas não falam’, daí eu vou lá e faço o arranjo para a música que a pessoa pediu. Teve um dia que uma pessoa me pediu a música “Pai e Mãe”, do Gil. Eu não me lembrava dessa música. Quando fui ver era uma música do Refazenda. Uma música que quase foi ofuscada pelas outras canções. Tem “Lamento Sertanejo”, tem as canções de Dominguinhos muito famosas. Tem a própria Refazenda. Enfim… que são canções que as pessoas se lembram mais. E eu não lembrava dessa música. Do disco Refazenda já tocava várias músicas, tocava Lamento Sertanejo, tocava Tenho Sede, tocava o Ela… Quando aprendi essa música eu falei: caramba é a quarta música desse disco. Eu vou ver quantas músicas esse disco tem. Tem onze. Pronto. Desse modo, esse disco surge de dois lugares, vem da afinidade pessoal, assim com a mensagem filosófica do disco e também em sequência a algo que venho fazendo desde o disco do Canhoto, praticamente, ali desde o fim dos anos 90 onde venho me dedicando às músicas. Então, o que me levou a gravar esse disco foi a identificação com as músicas e isso se tornou uma consequência natural da minha prática musical. Assim como o disco do Canhoto.  

MEMUS – Por fim, o que você acha da criação da Memus? 

Fernando Caneca – Acho de uma importância enorme. Acho que é fundamental a nossa terra, o lugar que vivemos dá a oportunidade de saber como ele foi formado. Eu acho que é fundamental as pessoas que vivem ai de saber quem criou as músicas daí. Quem são as pessoas que estão formando a cultura do lugar. Eu vou aqui também falar uma coisa que eu aprendi. Teve uma vez que estava viajando com a Marisa Monte, uma viagem inesquecível. Passamos 120 dias fora do Brasil. Destes 120 dias nós moramos dentro de um ônibus, na Europa, éramos 14 pessoas. Essa viagem marcou todas essas pessoas que estavam lá. Certo dia conversando e escutando música, a Marisa Monte falou uma grande verdade e me deu um norte de como eu quero me expressar. Ela falou que quanto mais a gente direcionar a antena para nossa tribo, ela disse isso em 94/95, mais internacional você se torna. Eu acho que você olhar para sua cultura, saber de onde você vem, saber a origem dos sotaques, as diferentes formas, enfim… Saber o mais que você puder de sua tribo, mais condições você tem de se expressar naturalmente e de se comunicar. Eu sempre tive isso e vivencio isso. Porque eu comecei a partir daí a desenvolver um repertório, aí vem a minha busca por Canhoto, por Luperce Miranda. Eu acho isso de suma importância essas associações. Acho que vocês têm que encontrar formas de passar isso para mais pessoas. Motivar as pessoas a saber mais delas. Mostrar o valor que elas têm. A escola de música da Paraíba se tornou uma escola referência de ensino. Me coloco à disposição para contribuir o máximo com vocês.